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Heroes

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  • Por Reinaldo Santos

“Se você encontrar um homem sábio, madrugue para visitá-lo, e que seu pé gaste a soleira da sua porta.”

Segundo Adão Carlos, pensador e poeta nova-serranense, tal fragmento vem do Eclesiástico 6:36. É bem verdade tal preceito. E Agenor, mesmo sendo sábio de nascimento, também andava à luz do citado ensinamento. Mas um imbróglio sempre surgia quando se fazia necessário receber a sabedoria emanada do famigerado irmão, o Tõe.

A verdade era que os dois se amavam, e eram quase idênticos em sabedoria e liderança. E sabe-se, inclusive por conhecimentos bíblico-históricos, que qualquer tipo de acúmulo, seja intelectual, hierárquico ou de posses, entre pessoas muito próximas, gera sentimentos antagônicos.

Sim, é fato. Aconteceu com Caim e Abel, Adonias e Salomão, também a uma dupla de administradores do Centro-Oeste de Minas, cujos nomes vagam à memória.

Um dos fatos que ilustram tal antagonismo ocorreu há algumas décadas. Estava Agenor em sua cidadezinha, onde o mato é ralo e o rio faz a curva, acontecia no momento o tradicional futebol de domingo à tarde.

Diziam que a semana não se iniciava naquelas terras antes de acontecer um jogo entre times da região. A agenda de espera era disputadíssima, o jogo era, literalmente de botinadores, os jogadores, em sua maioria lavradores, usavam botinas durante a partida. Levantavam a poeira vermelha no campo de cascalho.

Agenor era atacante imprescindível do time da comunidade do Galo, jogador que entrava em campo para decidir, segundo ele mesmo. Houvesse naquela cidade registros oficiais de suas jogadas, Pelé e companhia haveriam de reinventar o futebol.

Era quase final de primeiro tempo, o astro do interior acabara de marcar seu quarto gol, para fazer espasmos no público feminino, que de costume o acompanhava.

Nunca se sabia ao certo se tanto delírio era fruto de sua genialidade futebolística, ou de seus raros olhos verdes, contrastantes com a pele morena. Os tantos gritos de ovação misturaram-se aos desencontrados gritos vindos do Rio São Miguel, que fazia curva em torno do campo.

_ O Soares não saiu da água, acudam!

_ Ele deve ter saído do outro lado.

_ Ele vai morrer. Entrem lá!

Sabia-se que alguém, naquele momento, havia enfrentado as correntezas que cortavam a cidade. Correntezas que perdoavam a poucos, e a muitos levavam. Alguns jamais encontrados.

Os curiosos rapidamente se achegaram na esperança de dar vistas ao vivente em alguma parte do rio, nada. Entre os poucos a desafiar o rio, e ainda pisando sobre a terra, estava o Agenor, único presente. Não foi necessário uma palavra sequer para o exímio nadador entender que era ele a única esperança de reaver o Soares com vida.

Rapidamente, havia desfeito das roupas e, apenas de cueca, resolveu vasculhar o rio no sentido contrário à correnteza. Ele sempre dizia que era o meio mais eficiente de se buscar alguém em rios; estar sempre contrário à água para não se deixar ir a seu favor. Parecia suicídio, mas não para quem o conhecia e já o vira nadar.

Era uma cena que estava prestes a marcar a memória da pequena cidade. Algo definido pelos presentes como sobre-humano. A cada braçada eram cinco metros rio acima e fazendo curva.

Dado a largura do São Miguel, foram cinco subidas para varrer os prováveis pontos de se achar o ser. Nenhuma delas alcançou o objetivo. Saindo da água, ajeitando a cueca, disse certo de suas palavras:

_ Ele já se foi

Após a sentença, embora decepcionados, todos o olhavam com admiração. Agenor também ficou decepcionado, isto ao ouvir de um parente da vítima o que se deveria fazer para encontrar o corpo.

_ Vão buscar o Tõe, conta-se que ele acha qualquer defunto na água.

Era bem verdade. Antônio era versado em técnicas de busca pouco conhecidas em terras brasileiras, chegadas ao mundo novo com alguns dos descobridores, ficando restritas a raras sesmarias de Rondônia. Embora não acatasse a ideia, Agenor não poderia se opor a ela. Sua alçada era salvamento de pessoas vivas. Sentou-se e ficou a observar o raivoso curso do rio. No fundo, sentia que assistiria a uma cena de fé, assustadora e comovente.

Antônio apareceu em minutos, homem de poucas palavras, chegou com seus aparatos medievais, ajoelhou-se ao solo, rezou em apóstrofe. Apanhou no fundo do embornal uma pequena cuia, colocando-a ao chão, tomou uma vela benta (daquelas da sexta-feira da paixão) e a colocou acesa no centro da cuia.

A esta altura já se tinha noção do que ocorreria, mas se duvidava da eficiência do fato, dado o estado característico do rio. A cuia, posta na margem, logo já havia alcançado a correnteza, sobre a qual, inexplicavelmente, desceu lenta e sem extinguir a chama.

Passou a curva, a parte mais inacreditável, seguiu o curso acompanhada de olhos silenciosos e atarantados, até, finalmente, parar bem no meio do leito, mesmo sem nada para ampará-la.

Susto e silêncio.

Antônio, como se ali estivesse sozinho, pula de pé e desaparece nas turvas e profundas águas.

Agenor aproxima-se rapidamente da margem, ele sabe que não é necessário, mas tem vontade de acompanhar o irmão. Durante trinta segundos, nenhuma respiração de quem presenciava era ouvida. Até que algumas bolhas precedem a emersão de Tõe, surge sem aparentar cansaço, mas com as duas mãos se movendo livremente, sem sinal do defunto.

Apreensão. Ao fundo a vela, ainda parada, mas agora apagada. Nadando até a margem, se arrasta pelas pedras até surgirem suas pernas atreladas ao falecido. Enquanto Soares era tomado nos braços de alguns presentes, Antônio já estava com o embornal ao ombro. E se virando para sair (sutil como um tiro de canhão), mesmo sabendo que seria incompreendido, resmunga:

_ Beginers!

Português, Javanês, Caipirês e Inglês. O antagonismo expresso por Agenor se justificava, Além de todo o exposto, Antônio era poliglota.

  • REINALDO SANTOS é Gerente Comercial, Professor de Língua Portuguesa e Literaturas

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