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Triagem hospitalar

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O fim do plantão estava próximo e poucas pessoas aguardavam atendimento no pronto-socorro do hospital público. A enfermeira da triagem ansiava chegar em casa, após um dia exaustivo de braços quebrados, dois partos, cortes com necessidades de suturas na cabeça, um infarto, umas enxaquecas. Ela é especialista no Protocolo de Manchester, método hospitalar que classifica os casos em escalas que vão das emergências às não urgências, para que o paciente mais grave seja atendido com prioridade.

Com o tempo, a enfermeira aprendeu, na prática, a diagnosticar as verdades e as mentiras de todos que buscam um alento ali. Gosta do que faz, mas, naquele dia, ainda teria de passar no supermercado para fazer o sacolão da semana e já estava desgostosa de cansaço após 23 horas, emendando um trabalho no outro. Paciência quase zero.

Na sua frente, uma mulher chorosa, preocupada, mãos em movimentos de apreensão, de poucas palavras sem saber explicar o que estava acontecendo com a filha cabisbaixa. A jovem, de uns 14 anos, permanecia muda enquanto a mãe relatava a história. A menina havia tentado um suicídio naquela tarde de terça-feira.

Quando ouviu o último trecho das frases, a enfermeira mudou a postura, pois achara, no início da conversa, que era mais um chilique de adolescente querendo matar aula, que estava ali dizendo ter cólica só para conseguir um atestado.

A enfermeira pensava. O motivo é a solidão, a dor que não cessa, o desespero pela falta de solução. É o sentimento que não cura, a perda insubstituível, a carência do abraço. Simplesmente, a ausência. O abandono, o desamor, a indiferença.

Às vezes, não existe pretexto. Em outras, há um contexto. Os números de suicídio assustam, são alarmantes, aumentam de acordo com as comparações com dados de períodos passados.

Em algumas pesquisas, está no topo das listas das causas de mortes, sobretudo, entre os jovens de 15 a 29 anos. Caberia análise para tal dilema? Por que tirar a própria vida, principalmente, no início dela?

Siga-se o curso de perguntas para a menina, aparentemente, frágil. “Fulana, o que você tem? O que você fez? O que sua mãe está contando é sério?” Ela respondia monossilabicamente: “não tenho nada. Não fiz nada. Sim, não quero mais viver.” A enfermeira insistia: “Para te ajudar, preciso saber o que você tem. Está com alguma dor? Tomou algum remédio? Está machucada?”

A paciente ficou vermelha. Esboçou vergonha ao balançar a cabeça contestando os questionamentos. Engoliu em seco. Resolveu revelar o acontecido: “Coloquei uma sacola de supermercado na cabeça e amarrei no pescoço. Não quero viver nesta merda de mundo. Minha mãe parou de colocar crédito no meu celular. Fiquei com dificuldade de respirar. Aí arranquei a sacola. Não deu certo.”

A profissional de saúde, cansada e impaciente, exercia com maestria o ofício, mesmo entendendo que aquele momento era fase dos ‘aborrecentes’. Na mente, riu por um instante: “seria a sacola de plástico ou ecológica”? Ficou chateada, pois a mãe deveria ter motivos para aplicar o castigo.

No rosto, a postura profissional. Iria dar uma lição. Avisou que suicídio era assunto sério, grave. Que ela era linda, mas que deveria pensar na preocupação que anda provocando nos pais. Disse ainda que a mãe devesse prestar atenção às necessidades da filha, fazer atividades juntas, conversar mais. Ter momentos sem aparelhos eletrônicos. E ainda falou um rosário de dicas e posturas. Colocou a pulseira verde na jovem. Mãe e filha ficariam duas horas esperando atendimento. Assim, teriam tempo de sobra para o diálogo.

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